top of page

Apolo Heringer Lisboa: muito além da luta de classes

O médico, professor e ambientalista mineiro Apolo Heringer Lisboa é o idealizador do Projeto Manuelzão, iniciativa voltada para a revitalização do Rio das Velhas, o principal afluente do São Francisco em plena Região Metropolitana de Belo Horizonte. Graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1967, ele é especialista em Pneumologia pelo Centro Hospitalar Universitário de Beni-Messous (Argel), e em Epidemiologia, pela Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica). Bem antes de lutar pela preservação da biodiversidade, este Cidadão Honorário da capital mineira também foi um militante de destaque durante os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985), período em que chegou a ser exilado e preso diversas vezes.


Nesta entrevista ao portal EcoDesenvolvimento.org, Apolo demonstra a importância da revitalização da Bacia do Rio das Velhas, além de relatar como ele despertou para essa causa, depois de anos de atuação pelos ideais marxistas. O também líder-parceiro da Fundação Avina compreende bem a complexidade da chamada luta de classes, mas já descobriu que pelo bem do planeta, lutas maiores precisam ser travadas.


EcoD: Quando é que começa o interesse do senhor pela revitalização do Rio das Velhas?


Apolo Heringer Lisboa: Bem. Eu sou médico, professor da faculdade de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas também tive uma militância política intensa. Estive exilado, fui preso várias vezes, morei em muitos países durante a ditadura, fui vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), então a minha trajetória política me levou muito para linhas da Revolução Socialista, da luta contra a ditadura, e tudo para mim era luta de classes. Só que eu cheguei à conclusão de que a luta de classes era uma luta dentro de uma espécie: a espécie humana, e na espécie humana, uma parte quer dominar a outra. Agora, colocando a espécie humana como uma espécie entre outras, você tem passarinho, peixes, mamíferos, as aves, sendo que todas essas espécies têm direito a vida. Então eu comecei a meditar que se a nossa casa comum, que são os rios, as matas, as florestas, está sendo degradada unicamente por uma espécie, a humana, eu estarei acabando com a vida de todas as outras. Foi aí que eu passei a lutar pela conservação do meio ambiente, com foco na água dos rios.


EcoD: E porque com esse foco específico?


Apolo Heringer Lisboa: Porque o rio reflete o estado geral do planeta. É na água dos rios que você vê a mentalidade humana, a qualidade de nossa atividade econômica. Tudo de ruim acontece no rio. E a volta do peixe sinaliza se a situação está melhorando ou piorando.


EcoD: Quais são os objetivos do Projeto Manuelzão no Rio das Velhas?


Apolo Heringer Lisboa: O Rio das Velhas é o principal afluente do Rio São Francisco. É uma bacia hidrográfica que abrange 4 milhões e 800 mil pessoas. Pouca gente sabe, mas trata-se da única região metropolitana do Rio São Francisco – fica em Belo Horizonte, às margens do Rio das Velhas.

O nosso objetivo é a recuperação desse rio. Nós começamos nosso trabalho em 1990, com a parte teórica, e lançando a ideia de que a volta do peixe é um dos objetivos principais de nossa atuação – fazer de tudo para o peixe voltar, por meio de tratamento de esgoto e da mobilização da sociedade. Mas nós só conseguimos começar esse trabalho em 1997. Dentro da Universidade Federal de Minas Gerais um grupo de professores se articulou em torno da medicina, pensando em saúde coletiva, onde foi discutida a relação de água poluída com doença, e o peixe apareceu como bioindicador natural – se a água melhora, vai ter mais peixe. Então nós trabalhamos muito em cima do biomonitoramento.

Em 2003 nós fizemos uma grande expedição pelo rio. Navegamos 800 quilômetros em todas as curvas dele e lançamos a meta 2010: nós queremos navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (a mais poluída). E a partir daí nós conseguimos levar o tratamento de esgoto de Belo Horizonte de 0% a praticamente 70%. Melhorou muito a qualidade do rio. Ainda não está dando para nadar dentro de Belo Horizonte, mas já está aparecendo peixes como Dourado e Surubim perto Da capital, enquanto no baixo e médio Rio das Velhas já tem mais peixe do que no Rio São Francisco. Então foi um movimento que deu certo. Um movimento com base científica, teórica e grande mobilização social. Esta é a força capaz de pressionar tanto as empresas como o governo a mudar suas posturas.


EcoD: Aproveitando esse gancho, o projeto conta com apoio do poder público?


Apolo Heringer Lisboa: Nós temos apoio da prefeitura e do governo estadual, mas é um apoio um tanto complicado, porque quando você trabalha por alguma coisa na qual você acredita profundamente na proposta você age de um jeito. Quando você trabalha porque a mobilização é grande e você quer tirar dividendo político ou porque você quer melhorar sua imagem na fotografia, sempre deixa a desejar. O bom é quando as pessoas trabalham profundamente convencidas, porque aí elas sabem muito bem o que fazer – e fazem melhor.


EcoD: Há como separar o médico Apolo do ambientalista Apolo?


Apolo Heringer Lisboa: Não. O meu trabalho tem base na preocupação com a saúde humana. Saúde para nós não é uma questão médica, mas de qualidade de vida, uma questão de meio ambiente que inclui a política econômica, transporte, moradia, porque tudo isso é meio ambiente. A saúde do peixe está para a qualidade das águas dos rios, assim como a saúde humana está para a qualidade de vida da sociedade, das cidades e dos bairros. Você não pode separar. Se eu quero salvar o peixe, eu preciso tratar o rio. Se eu quero tratar da saúde humana eu preciso cuidar da vida social.


EcoD: Como o Projeto Manuelzão está organizado?


Apolo Heringer Lisboa: Nós temos um jornal bimensal com tiragem de 100 mil exemplares, um site, fazemos muitas palestras, trabalhos em escolas, ocupamos regularmente a grande mídia da cidade, atingimos os municípios do interior, já fizemos duas grandes expedições pelo rio em 30 dias (800 km remando), parando em diversos lugares para realizarmos debates. Realizamos trabalhos voltados para a preservação dos afluentes, como festivais de música, literatura, dança.


EcoD: O que está faltando para que o Rio das Velhas possa ser revitalizado?


Apolo Heringer Lisboa: Que o ser humano mude a própria mentalidade. Eu sempre digo e repito que a questão fundamental não é a volta do peixe. A questão fundamental é a mudança da mentalidade. A volta do peixe é um elemento mobilizador que promove condições para a mudança da mentalidade. Isso porque a questão cultural-política é a base para tudo o que o ser humano faz.

Se eu não atingir o cérebro das pessoas, a cultura, a visão de mundo, eu não vou conseguir sucesso em nada, porque as pessoas não vão trabalhar convencidas. Elas precisam se convencer de que um mundo mais sustentável para todas as espécies é possível. Eu acredito nisso.


EcoD: Apolo, obrigado pela sua entrevista e muito sucesso para o projeto!


Apolo Heringer Lisboa: Muito obrigado a vocês!

Comments


bottom of page