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Liberdade para pensar sem medo.

Cláudio Antonio Di Mauro*, Doutor em Geografia Física pela USP e professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), entrevista em seu site Apolo Heringer Lisboa. Apolo fala de suas concepções filosóficas, sua luta contra a ditadura, o exílio e sobre o Projeto Manuelzão. * Di Mauro foi prefeito de Rio Claro, São Paulo, 1996 e 2000.

1) Cláudio Antonio Di Mauro (CAM)- Apolo, sua trajetória mostra a postura de um livre pensador. Embora sob forte influência cristã e do marxismo você tem buscado caminhos próprios. Qual a metodologia com a qual trabalha ou que lhe é mais próxima?

Apolo: Atualmente estou na linha da transdisciplinaridade tentando compreender esse mundo através do pensamento complexo. Edgar Morin e Basarab Nicolescu são os autores mais conhecidos nessa linha. Essa linha de pensamento está ancorada na contemporaneidade das descobertas do início do século XX, com Einstein, Max Planck, Heisenberg, Bohr e outros, porém tem raízes no pensamento holístico da Antiguidade.


2) CAM – Qual foi sua relação com o golpe militar de 1964 e com a ditadura que foi implantada no Brasil ?

Apolo: O golpe militar me pegou no início do segundo ano do curso de medicina aqui na UFMG. Estava na presidência do diretório acadêmico. Reagimos, denunciamos o golpe e fui preso. Depois fui vice-presidente da UNE. Sofri três prisões durante o meu curso, conhecendo quartéis de BH, Brasília e Juiz de Fora. Nossa luta era pela liberdade de expressão e contra a ditadura militar, e também pelo socialismo, lembro que vivíamos em pleno auge da guerra fria. Ao ser diplomado precisei desaparecer de BH e vivi no Rio de Janeiro 5 anos na clandestinidade, com nome falso e tudo, indo depois para o Chile, Argentina e finalmente passei 5 anos no norte da África, exercendo a medicina na Universidade de Argel.


3) CAM- Durante a ditadura você esteve exilado no norte da África, convivendo com povos muçulmanos. Que experiência de aprendizado isso lhe proporcionou? Como esses povos interferiram em sua formação?

Apolo: A sociedade muçulmana é muito acolhedora. Onde vivi eles eram predominantemente árabes. As pessoas são geralmente muito hospitaleiras, mas excessivamente religiosas pro meu gosto. Essa fé foi inculcada com muita força, no curso de guerras, e está presente em cada minuto deles. Mas a hospitalidade deles comigo me marcou, sobretudo porque os argelinos me acolheram como um filho, pois eles conheceram as atrocidades da ocupação cristã francesa e me viam com um guerrilheiro que lutava pela liberdade no Brasil, como um dos seus filhos que foram mortos. Era uma relação muito forte de solidariedade. Eu fui médico pneumologista num hospital da cidade e nos postos médicos, pelo Ministério da Saúde, cuidando sobretudo das doenças pulmonares, como dos tuberculosos, que eram muitos. Hoje melhorou muito a situação. A mais importante experiência que tive foi viver num país com um olhar diferente sobre o mundo ocidental cristão. São dois pólos, dois olhares, duas culturas, ocidente e oriente, leia-se Europa /Estados Unidos e o leste. Interessante que a base de tudo foi Abrahão, de onde saíram essas vertentes religiosas, mas surgiu o cristianismo. Ele foi uma síntese do melhor do judaísmo com o melhor do budismo, com suas meditações, paz e amor. Isso acabou com a cooptação dos cristãos pelo Império Romano quando o cristianismo mudou de lado, passou a ser a religião oficial. Foi a segunda crucificação, e a pior delas.


4) CAM- A história de sua vida e suas concepções filosóficas tiveram que grau de importância na formulação do Projeto Manuelzão. Qual foi sua responsabilidade na concepção e implementação do Projeto Manuelzão?

Apolo: O Projeto Manuelzão foi uma tentativa relativamente bem sucedida até o momento, de levar adiante um pensamento político fora dos cânones da política tradicional de esquerda centrada na luta de classes e nos instrumentos tradicionais de exercício do poder. A questão ambiental é para mim ver o mundo como o milagre da vida no Universo, podendo pensar hipóteses de como tudo isso surgiu e como podemos conhecê-lo através da nossa percepção, da ciência, da nossa inteligência, pois ele é compreensível, embora não seja evidente em si mesmo. Precisamos decifrá-lo, pois o aparente é enganoso. Eu fui o autor da proposta, ela surgiu na busca de um caminho novo e completamente diferente do que praticava nos partidos e na trilha do que chamava de socialismo. Nessa trilha eu n ao enxergava as demais espécies, as águas, o ar, o solo, apenas enxergava injustiça e romantizava o papel do homem pobre e explorado como fundador de nova cultura. Vou ficar só nessa introdução, senão não pára.


5) CAM- Quais foram os objetivos do Projeto Manuelzão. Quais transformações ele teve ao longo destes anos de sua existência? Onde pretende chegar?

Apolo: O Projeto Manuelzão se primou pela elaboração estratégica, unindo teoria e prática. Definimos em 1990 o território de bacia hidrográfica como a base de nossa proposta, as águas como nosso eixo de mobilização, de monitoramento de nossa mentalidade civilizatória e de condução metodológica do processo. Escolhemos a bacia do Rio das Velhas, sub bacia do rio São Francisco como locus de nossa experiência pioneira. Propusemos que a volta do peixe seria uma alavanca de mobilização que uniria diversos movimentos sócio-ambientais e pensamentos políticos. A volta do peixe amarra uma série de iniciativas, é o principal objetivo específico, mas o objetivo geral, fundamental a ser alcançado, através da luta pela volta do peixe é a transformação da mentalidade civilizatória.Assim, criamos uma mobilização na UFMG e outras unidades acadêmicas, fizemos articulações com os diversos níveis governamentais e empresariais, nos assumindo enquanto sociedade civil. Não vou falar aqui das dificuldades enfrentadas, que é um capítulo inesquecível! Pude abordar isso com outros companheiros no livro que resume nossos primeiros 10 anos, intitulado Projeto Manuelzão: a história da mobilização que começou em torno de um rio. Editado pelo PMz.


6) CAM- Qual é sua visão a respeito da Política Nacional de Recursos Hídricos ? Qual sua expectativa em relação à atuação dos Comitês de Bacias Hidrográficas?

Apolo: A lei federal 9433/97, que criou essa, foi inspiradora de um movimento em todo o país com base no território de bacia hidrográfica. Mas ela nunca conseguiu a mesma força da lei federal 6938/81, crida pelos militares para o processo de licenciamento e outorga dos empreendimentos. A maioria quase total dos comitês de bacias hidrográficas se comportam como a rainha da Inglaterra. Agora com a organização da agências de bacia, com a cobrança pelo uso da água bruta dos chamados grandes usuários, estão com dinheiro. Dinheiro! Quanto perigo contido nessa palavra! Será que vai virar mais um cartório nesse país!? O papel dos comitês é político, é mobilizador, mas ao mesmo tempo é um órgão de estado, não é uma Ong! Muito interessante, pois é um órgão de estado, do sistema de Recursos Hídricos, com composição paritária entre sociedade civil e governo, se considerarmos os empresários como sociedade civil. É uma novidade em matéria de democracia descentralizada e participativa. Embora o executivo controle totalmente os órgão superiores desse mesmo sistema.


7) CAM- Qual a importância dos peixes para os corpos de água superficiais e para os demais componentes da natureza, inclusive o homem ?

Apolo: Os peixes são expressão da vida na Terra e os rios seu ecossistema. Eles não vivem fora d’água. São assim indicadores de saúde ambiental. O espelho d’água mostra a nossa cara! Os espelhos d’água revelam o que passa no território da bacia, expressam as políticas econômicas e a mentalidade civilizatória no trato com o meio ambiente, solo, ar, flora e fauna. Os peixes simbolizam todos os demais organismos vivos que vivem na água ou dependem de água para sobreviver, e que, por isso vivem por perto de algum corpo d’água. Mas a qualidade ambiental das águas, refletida em sua biota, sobretudo numa sociedade complexa como a nossa, industrializada e globalizada, mostra o estado da nossa mentalidade civilizatória e o sentido do seu desenvolvimento.


8) CAM- Costuma-se dizer que o que pode transformar o mundo é a educação. Você concorda com isso? A qual educação você se refere? A educação formal, no Brasil emancipa? Enfim, a educação é a salvação para o mundo?

Apolo: Para mim, a mudança na mente é fundamental. Mas ela depende de oportunidades. As práticas sociais, no trabalho e no convívio social, permitem ao seres humanos refletirem sobre sua condição. A educação formal tende a ser controladora para a reprodução do próprio sistema de controle social. Torna-se conservadora por isso. As artes e os debates, que penso estarem sintetizadas numa concepção integrada de teatro, têm um papel preponderante nas transformações da mentalidade e da nossa sociedade. Escrevi há dois anos uma proposta chamada de Teatro Manuelzão. Estamos a procura de parceiros para implementar essa proposta, caso concordem com seu conteúdo, pois trata-se de um movimento cultural.


9) CAM- Você tem formação formal na Medicina e enveredou pelas atividades ambientais. Até que ponto existe relação entre saúde e água? E com os demais componentes da natureza?

Apolo: Fui descobrindo a água aos poucos mas essa descoberta escancarou quando fui estudar e trabalhar no combate à epidemia de cólera. Cunhei a expressão que “a cólera é a vingança da água enfezada”. Fiz meu mestrado em Fortaleza, no Ceará, onde grassou o maior surto epidêmico de cólera no Brasil, nos primeiros anos da década de 90. As águas tanto podem ser veículo de saúde quanto de doenças. Não tem sentido o lançamento de esgotos e lixo, agrotóxicos e fezes, animais mortos e terra nos rios. E pensar que isso acontece com autorização técnicas de diplomados em cursos superiores?!


10) CAM- Você reconhece os seres humanos como componentes da natureza? Os seres humanos e suas atividades são naturais ? E então, os seres humanos são Deus ou Deuses?

Apolo: Os seres humanos são animais vertebrados, mamíferos, bípedes, com telencéfalo desenvolvido e polegar opositor. Capaz de grandes feitos e também de atrocidades. Os seres humanos vivem conflitos fortíssimos entre sua origem animal fisiológica evolutiva e sua busca de transcendência, representada na história da cultura e da civilização. É a natureza tomando consciência de si e criando uma outra natureza, no plano cultural.


11) CAM- Você diz que o Livro de Deus não é a bíblia, mas é o Universo. O que você está dizendo com essa afirmação?

Apolo: A Bíblia é um livro escrito por mãos humanas, é o livro dos judeus, da sabedoria deles, da história deles. Livro maravilhoso, que sempre leio e faço minhas reflexões. Está na base de minha formação, é uma das pedras do meu fundamento intelectual. Mas o Universo é a fonte de todo o conhecimento, incluindo a vida social. Essa realidade não foi criada por mãos humanas. É nossa fonte de conhecimentos e revelam algo maior que nós, a decifrar, a curtir, é um grande mistério por enquanto. Mas chegaremos mais perto de compreendê-lo através do nosso esforço. Daí a importância de estudar sempre e pesquisar. Sem superstições e falsas verdades que paralisam a nossa mente.


12) CAM- o que você gostaria de abordar que não lhe foi perguntado ? Sinta-se a vontade para tratar do assunto que mais lhe interessa nestes dias.

Apolo: Agradeço a oportunidade e desejo a todos um uso constante de nossa maior dádiva: o nosso cérebro, onde podem residir conhecimentos, sabedoria, bondade e desejo de transformações. Podemos renascer muitas vezes nessa vida, podemos pensar sem medo, a liberdade precisa ser exercida.


Publicado no site opa.org.br em Agosto de 2011 http://www.opa.org.br/noticias/1188/liberdade-para-pensar-sem-medo

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